quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Carta ao Prof. Sírio Possenti – sobre seu artigo "Deslizes de celebridade", revista Língua Portuguesa, n. 48

Boa tarde, professor Possenti

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Acabo de receber minha edição da revista Língua Portuguesa n. 48 e ler seu artigo na seção 'Ortografia' sobre o debate acerca do 'deslize' cometido pela 'célebre' Sasha no Twitter. Neste momento, sinto-me impelida a participar da discussão. Gostaria de relatar ao senhor o que venho refletindo sobre a questão da ortografia, tentando, deste modo, trazer – mesmo que de forma despretensiosa – um complemento às suas ideias – se o professor assim mo permitir.

Coincidentemente, ontem à noite, durante a primeira aula de um curso de revisão de texto, complementar à faculdade que estou frequentando, o assunto 'erro ortográfico da Sasha' entrou em pauta. O deboche foi consenso entre os demais participantes. Não houve aluno – quase todos já formados em Letras ou Jornalismo – que não esboçasse uma tirada preconceituosa, um comentário depreciativo. Como o senhor muito bem colocou em seu texto, indivíduos que "se sentem autorizados a julgar a capacidade de pessoas que cometem erros ortográficos" e, no caso da aula de ontem, agem "sem demonstrar competência para a análise do sistema de escrita, análise que poderia explicar a natureza e a razão do erro". Fiquei incomodada.

Muito se discute sobre a influência dos novos meios instantâneos de comunicação no uso e na mutação da língua portuguesa. Há quem acuse o 'internetês' de estar matando o português. Particularmente, minha veia mais liberal discorda de tanto alarde. Uma língua só é viva se estiver em constante mutação; ponto para a expansão das oportunidades de exercício da escrita, da leitura e da criatividade. Já o meu viés conservador, aquele que gosta de Machado de Assis e tem como ofício a revisão de textos, se ressente de tantas abreviações e aglutinações. Mas, ok, nada disso importa verdadeiramente. A questão central é que estas novas ferramentas de comunicação – MSN, Gtalk, Twitter, Skype, etc. – trazem para o mundo visual uma reprodução do que costumava ser, quase exclusivamente, auditivo. Todos esses messengers da vida tendem a reproduzir a fala! E tal como o som, pouco importa se 'cena' é escrito com 's' ou com 'c'.

Gostaria de reforçar para o senhor que concordo que, por estar em meios escritos, esse tipo de equívoco constitui, sim, erro, mas não grave. Sério mesmo é quando alguém escreve 'voçê' assim, com cedilha! Esta pessoa está 'atropelando' a língua, pois desconhece a essência da regra. Confusões sonoras/ortográficas são, como o professor exemplificou, de cunho etimológico e legal, o que foge, muitas vezes, à lógica. Como explicar para uma criança ou para um estrangeiro em processo de aprendizagem de nossa língua que o 'x' – coitado, tão plural... – possui quatro, cinco sons diferentes? E, outro exemplo, que há três formas de escrever 'sessão/cessão/seção', e que TODAS são pronunciadas da mesma maneira?

Grafar 'cena' ou 'sena' importa pouco quando estamos utilizando um meio não formal que reproduza a fala – não que eu ache que os erros não devam ser revistos e consertados, o que critico é justamente o alarde. Outro exemplo recente foi a confusão envolvendo o jornalista William Bonner e a ex-BBB Milena Fagundes. Por pressa ou falta de atenção, mas certamente não por desconhecimento, Bonner grafou a palavra 'ia' com acento agudo no 'i'. Pergunto: quantos de nós nunca fizemos isso? Ainda procuro candidato que comprove tal façanha. Esse acento no 'i' é 'natural', pois está na nossa fala – é tônico por regra e por ênfase. Porém, citando a tal regra, não leva acento gráfico por ser uma palavra paroxítona terminada em 'a'. Bonner errou, mas quem sofreu retaliações foi a pobre da moça que 'ousou' corrigir o tão experiente jornalista e escritor. Assim como o senhor aponta em seu artigo, eis outro caso em que as pessoas se sentem no direito do julgar os outros baseando suas acusações no uso correto ou não da língua portuguesa. Nesse caso especificamente, o ataque foi direcionado a quem fez a correção, justamente por seus perseguidores entenderem que uma ex-BBB não seja alguém qualificado para corrigir ortograficamente ninguém.

Fugindo um pouco da discussão sobre os meios virtuais, mas ainda na análise da flexibilidade sobre os deslizes ortográficos, certa vez deparei-me com a seguinte frase pintada no muro de uma favela: "PMs assacinos!". Retive-me analisando o texto por alguns instantes – apenas alguns, pois não era lugar para ficar exatamente parada por muito tempo! A primeira sensação foi a de estranhamento, de desconforto. Os olhos que conhecem a palavra têm dificuldade não de entender o escrito, mas de o reconhecer como certo – juntar o significante, neste caso errado, com o significado. Já o momento seguinte foi de júbilo! Saí de lá maravilhada com o que acabara de presenciar. O cidadão revoltado – certamente com seus motivos para tal, mesmo que eu não concorde inteiramente com o texto – foi extremamente preciso na informação sonora que desejava passar. Ele não sabia escrever 'assassinos', assim com tantos esses!, mas sabia exatamente que o som era o mesmo que o produzido pelo 'c' antes de 'e' ou 'i'. Ele não escreveu 'assasinos' ou 'assaçinos'. Entendo que seja uma diferença grande, e eis o motivo de meu regozijo.

Assim como devemos considerar a pouca idade da Sasha, sua falta de experiência e, possivelmente, leitura para relevarmos seu 'erro', também é preciso levar em conta o contexto socioeducativo do sujeito que manifestou sua revolta por escrito no muro da sua comunidade! Tanto ele quanto a filha da Xuxa fizeram reproduções escritas fiéis dos sons de suas falas, mesmo que essas não tenham obedecido às regras ortográficas.

"A língua [ou o uso que fazemos dela] é a primeira forma de discriminação social", disse-me certa vez meu professor de português do colégio. Nunca esqueci esta fala, tentando levar para o resto da vida a não reprodução de um preconceito – assim como todos os outros – tão medonho.

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Um abraço.
TC