terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Prosa ligeira - texto a quatro mãos

(em parceria com Luiz Renato Junqueira Sussekind Portella - poietikeuomai.blogspot.com/)


Toda manhã, travo uma luta sem esperança contra o sol na janela. Procuro uma sombra, uma trégua atrás dos móveis, edifico uma fortaleza frágil de travesseiros – desisto. Desperto automático, como meu celular, um ringtone cuja melodia me leva do banheiro para a cozinha, dali para o quarto, dali para o banheiro, para a cozinha, numa melodia sonâmbula, o sono rebelde agarrados aos meus calcanhares, dificultando os passos.

Não vejo as ruas; a moto me conduz por uma espécie de tétris-tráfego, de homens e veículos. Paro. Caminho. Não vejo o caminho. Não espero o elevador, subo de escadas. Aí o sono desiste, dolorido dos degraus. No salão, monitores capturam rostos e entusiasmo. Deixo-me capturar, outra espécie de sono.

Brinco com o copo vagabundo de plástico, que exala o vapor do cappuccino com chocolate quente. Deixo os dedos e a palma da mão queimarem até quase machucar. Perco a conta dos minutos, me detenho nessa brincadeira.

Agarro o copo, escaldante, na intenção de levá-lo à boca. A língua desconfiada mede a temperatura da bebida, aconselhando um só gole hesitante.

Na indiferença aparente, sou açoitado pela lentidão matinal do meio corporativo: café sem açúcar, que vida sem graça me traz ao paladar a dieta.

Camisa polo e crachá pendurado. Olho ao redor e vejo uma massa produtiva semipadronizada: muitas camisas polo e outros tantos crachás pendurados.

O que me leva a estar aqui? O que me faz perder, todos os dias!, a batalha contra a vontade irrepreensível de estar em qualquer outro lugar? Vagueio dentro de mim à busca, tal qual cachorro caça o próprio rabo, de perguntas que não precisam de respostas. E passo horas sentado inerte, absorto em obrigações e teatros. A luz fluorescente e o zunzum ambiente potencializam a letargia e a vontade de fugir (da necessidade de ficar).

Traçando um paralelo entre "Viagem a Ixtlan" e "Nove noites"

Em 1971, Carlos Castañeda lança Uma estranha realidade, o segundo livro da trilogia iniciada com A erva do diabo (1968), seguido por Viagem a Ixtlan (1972).

O autor relata, baseado em seu processo de aprendizagem com o brujo Dom Juan, a necessidade de distinguir as maneiras de se interpretar o mundo, diferenciadas entre 'ver' e 'olhar': "Aparentemente, no seu sistema de conhecimento havia a possibilidade de estabelecer-se uma diferença semântica entre 'ver' e 'olhar' como duas maneiras distintas de perceber. 'Olhar' referia-se a qualquer maneira comum em que estejamos acostumados a perceber o mundo, enquanto 'ver' encerra um processo muito complexo, em virtude do qual um homem de conhecimento supostamente percebe a 'essência' das coisas do mundo."

Bernardo Carvalho, com Nove noites, leva o leitor a se questionar, de maneira indireta, sobre o que é ou não é real nas coisas que conhecemos, entendemos ou esperamos do mundo. Sua história flutua sempre entre aspectos ora autobiográficos, ora documentais ou, simplesmente, ficcionais. Deixa o leitor assumir as rédeas que conduzem a trama solicitando que ele desvende por si só os mistérios propostos. Bernardo Carvalho confunde; oscila; parte da verdade para privilegiar o que ela guarda de falso, de ambíguo – sua história mexe com lembranças (suas e de elementos da pesquisa) que guardam verdades, mentiras e verdades mal-contadas... utiliza-se de realismo simulado.

Fazendo um paralelo entre os dois autores, percebemos que os ensinamentos do índio yaqui Dom Juan não são limitados à esfera do misticismo, e sim perpassam nosso sofisticado questionamento acerca da metafísica e do realismo pós-moderno. Simplesmente 'olhar' a trama de Nove noites é angustiar-se com a procura pelo motivo que levou Buell Quain ao suicídio e frustrar-se com o final da narrativa – que, por que diabos, não traz uma resposta?! – deixando empoeirar, terminada a leitura, o livro no canto da prateleira. Porém, 'ver' proporciona inquietação a respeito das múltiplas realidades apresentadas no texto, das quebras de referencialidade, das mais diferentes versões e possibilidades que pretendem contar e explicar um mesmo fato – e como estas variações não garantem que se chegue à verdade!

Já em Viagem a Ixtlan, Dom Juan propõe a Castañeda que ele largue sua "história pessoal" de modo a ser livre das ideias que os outros possuíssem dele, assim como a perder a obrigação de ter sempre que as renovar, dar satisfações ou obrigar-se a corresponder às expectativas alheias, e sugere: "Pouco a pouco, deve criar uma névoa em torno de si; deve apagar tudo em volta de si até que nada possa ser considerado coisa sabida, até não haver nada de certo nem de real."

Buell Quain, que – na obra de Bernardo Carvalho, e até onde se sabe – não tinha nada de feiticeiro, foi exímio na arte de apagar sua "história pessoal"! Há uma névoa espessa entorno de sua identidade real. Tão grossa que, em Nove noites, o autor conta-nos sobre suas múltiplas identidades partindo das percepções diversas daqueles que conheceram (direta ou indiretamente) o etnólogo americano. Não há verdades absolutas a seu respeito, assim como não há mentiras. Restaram a névoa, as impressões e a imaginação (do autor e do leitor).

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Viagem

(Martin L.)

Muitos cânions percorri
Mas só em seus caminhos me encontrei

Do topo do monte,
Tenho a vista mais bela
Faço a curva, passo a relva
Tudo é você no horizonte

São rotas perfeitas esperando a minha boca
O vale, a planície, a gruta e cada gota...

O mistério mora na caverna.
Como na igreja canta o sino,
Tocar você é música eterna.

Escalo seus lisos montes,
Os caminhos são frondosos
A fitar-me, doces fontes
De meandros perigosos

Da soberania de seus lábios ao vale do seu colo
Deslizo por seu dorso, viajo em quente solo

Que linda exploração!
Quanto que aprendi!!!
Do desejo ao coração,
Que esta viagem não acabe por aqui...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ingênua pretensão

Você alguma vez pediu desculpas?
Pelo egoísmo? Pela imprudência?
Você alguma vez se deu conta do que faz?
Por manipular? Por brincar?
Você, em algum momento qualquer, já foi ferida?
Por amar? Por se entregar?

Você já chorou e dormiu?
Na solidão? No desespero?
Você já quis correr sem destino?
Na angústia? No arrependimento?
Você, ao menos uma vez, pensou no próximo?
Em seu carinho? Em seus sentimentos?

A porta da minha vida é logo ali
Escolha entrar ou sair
Mas não peça para passar uns dias no sofá
Não diga que não sabia que iria me magoar

Você escolheu jogar?
Deslealmente? Inconsequentemente?
Você desistiu de tentar?
Facilmente? Conscientemente?
Você, algum dia, me quis?
De verdade? Por inteira?

Você percebe meu olhar
Carente ou de desprezo?
Você sente o que está no ar?
A indiferença ou a tristeza?
Você, ainda nesta vida, conseguirá entender
A decepção ou o alívio?

A porta da minha vida é logo ali
Dou-lhe 10 segundos para decidir
Esteja certa da decisão que irá tomar
Chegou ao fim meu tempo de chorar.