sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Epifania machadiana

Certa vez conheci Capitu.

No insólito do estado inebriante, nos acordes indecifráveis e desimportantes, no rodopiar dos corpos e gingar de pernas, braços e sensações, as bocas tornaram-se unas, assim como os olhares, os pensamentos, os estados alterados de consciência. Eu já não era mais eu; ela já não respondia mais por si.

Encontro-me em estonteamento desde então, como se a embriaguez fosse contínua e progressiva. Seus olhos tragaram-me e revolveram-me em sucessivas ondas de desejo e mistério, inquietação e curiosidade. Olhos de ressaca. Fez-se presente o entendimento desta imagem literária; conheci minha Capitu.

Não tenho forças para lutar contra o verde oceâneo e vertiginoso que salta à sua fronte. Não tenho poderes para me desvencilhar da potência que carrega em si o seu olhar. Mirá-la esvai-me de autonomia lógica e racional, fazendo-me despender grande tempo e esforço para voltar a mim sem detrimento de meu juízo – um gládio quase sempre malogrado.

Obriga-me Capitu a que eu encare minhas fraquezas, travando um embate pacífico entre descobertas e prazeres. Diferentemente da literária, traçada como cigana oblíqua e dissimulada, a minha não é cônscia de seu poder. Sua juventude e garotice a impedem de artimanhas. Sua vontade e representação são legítimas de vivacidade de espírito moço e abocanham o coração velho e machucado que aqui se confessa.

Perco-me. Não só volteiam-me, mas provocam inconstância os olhos cingidos de clareza. Procuro-me. E me entrego aos beijos infindos de uma boca que não é só minha, de um gosto que não é só meu, mas que por meus os tomo enquanto posso. Encontro-me. Como alma despojada de sanidade, como quem busca alguma verdade.

Sonho em presença com o toque iminente, com o contato da pele ainda imaculada e viçosa, com o tatear dos contornos de sutil definição. Almejo os segundos ulteriores que me levarão à suspensão do respirar, à breve interrupção do Todo e sua transformação onírica: nossa efêmera univocidade.

Entorpeço-me no vascolejar de suas marés. Tento, em vão, sobreviver às contínuas pancadas das vagas de seus olhos e, invariavelmente, desfaleço indolente na margem arenosa de suas palavras. Derivo à mercê das intempéries de su'alma à espera de um resgate – de fato incapaz de me recobrar os sentidos.

... e assim ela se vai, levando consigo meu tormentoso talante, minha diminuta hombridade, minha falida sobriedade. Não há comedimento para a falta que deixará.

Certa vez conheci Capitu...