segunda-feira, 29 de junho de 2015

Poema sem título - outubro/2008

Antes, a espera
Agora, a certeza de que não vem
A imagem, lembrança quase tátil
Simplesmente se desfaz

O pijama jogado
O livro emprestado
O presente ofertado
O celular que não vai tocar

A dor da saudade
Uma sincera irmandade
Um coração pela metade
O grito que não quer calar

Seu cabelo, seu pelo
Seu corpo por inteiro
Desfaço-me a sonhar

Meu desejo, sua sina
Que sufoca e contamina
Você quis se libertar

Um corpo lindo e delgado
O hálito no pescoço
Um sorriso precioso
Que contagia tudo ao lado

Posso senti-la toda em mim
Difícil aceitar que este
Seja mesmo nosso fim

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Carta de amor

Hoje, tentei escrever uma carta de amor. Não consegui.

Tenho uma folha de caderno rabiscada com algumas anotações sobre a moça – tudo que nela me encanta e que observo com cauteloso desvelo. Aprecio detalhes desimportantes, essas coisas que o coração enamorado captura sem querer. Mesmo assim, tentei escrever uma carta de amor e não consegui.

Onde foi parar aquele fervor das palavras que precisam ser proferidas, da paixão que urge para ser declarada?

Fui incapaz de escrever, sequer, algumas linhas. Qualquer intenção de iniciar a epístola é rapidamente impossibilitada por um congelamento do espírito. Os dedos não se mexem sobre o teclado, as batidas do coração ficam mais lentas, querendo incapacitar o restante do corpo; nenhuma palavra surge. Nada.

Penso nos gestos dela, no seu jeito de falar, na cor e no cheiro de sua pele. Novamente, nada. Orquestrar ideias e imagens em estruturas textuais bonitas parece-me impossível. De onde vem essa censura?

Acredito que cartas de amor sejam contratos de entrega: “Eu declaro a você que meu tempo e meus pensamentos e minha energia já não me pertencem porque meu coração não sabe mais discernir o que não é você entre as coisas do mundo.”

É possível que eu não queira mais declarar a outra pessoa que me perco e me esqueço – nela, por ela, com ela. Percebo uma prudente interferência do superego em frear a palavra que tenta se fazer saber pela necessidade da alma de tumultuar a paz do cosmo. Já não sinto vontade de dizer ao outro que o amo – há sentimentos que ficam mais seguros enquanto guardados exclusivamente em nosso íntimo.

Algum dia foi fácil escrever cartas de amor. Várias. Bonitas. Coloridas. Extensas. Verdadeiras. Agora, a única verdade é que nada sentido ou pensado é realmente novo: em quantas outras missivas e para quantas outras mulheres as mesmas palavras já não foram usadas? O que há de original em adjetivos carinhosos e manifestações de desejos que eu já não tenha expressado anteriormente? Como expor um sentimento velho por uma pessoa nova?

Enfado-me na tentativa. Palavras, per se, não dão conta de suas próprias consequências. A imanência do texto romântico é diretamente proporcional à inerência do sentimento: cartas de amor duram o tempo da paixão – depois, viram lembranças guardadas no fundo do armário ao lado de fotos empoeiradas e souvenirs sem importância.

O corpo, que tenta contornar a paralisia dos sentidos, não triunfa sobre a ausência de perspectivas. O que sinto é um vazio em expansão sobrepujando-se ao impulso de confessar os humores do coração. Nada do que eu possa tentar expressar será capaz de exprimir minimamente o que de fato sinto; nenhuma palavra pode incutir na pessoa amada a real dimensão do amor exteriorizado – o único resultado disso é a frustração.

Afasto-me da tentativa de vencer a força que me impede de escrever. Escolho entender o vácuo de motivação como um sopro de autopreservação, e não como a destituição da capacidade de amar.

Hoje, tentei escrever uma carta de amor e não consegui. Talvez eu tente novamente amanhã.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Prosa ligeira - texto a quatro mãos

(em parceria com Luiz Renato Junqueira Sussekind Portella - poietikeuomai.blogspot.com/)


Toda manhã, travo uma luta sem esperança contra o sol na janela. Procuro uma sombra, uma trégua atrás dos móveis, edifico uma fortaleza frágil de travesseiros – desisto. Desperto automático, como meu celular, um ringtone cuja melodia me leva do banheiro para a cozinha, dali para o quarto, dali para o banheiro, para a cozinha, numa melodia sonâmbula, o sono rebelde agarrados aos meus calcanhares, dificultando os passos.

Não vejo as ruas; a moto me conduz por uma espécie de tétris-tráfego, de homens e veículos. Paro. Caminho. Não vejo o caminho. Não espero o elevador, subo de escadas. Aí o sono desiste, dolorido dos degraus. No salão, monitores capturam rostos e entusiasmo. Deixo-me capturar, outra espécie de sono.

Brinco com o copo vagabundo de plástico, que exala o vapor do cappuccino com chocolate quente. Deixo os dedos e a palma da mão queimarem até quase machucar. Perco a conta dos minutos, me detenho nessa brincadeira.

Agarro o copo, escaldante, na intenção de levá-lo à boca. A língua desconfiada mede a temperatura da bebida, aconselhando um só gole hesitante.

Na indiferença aparente, sou açoitado pela lentidão matinal do meio corporativo: café sem açúcar, que vida sem graça me traz ao paladar a dieta.

Camisa polo e crachá pendurado. Olho ao redor e vejo uma massa produtiva semipadronizada: muitas camisas polo e outros tantos crachás pendurados.

O que me leva a estar aqui? O que me faz perder, todos os dias!, a batalha contra a vontade irrepreensível de estar em qualquer outro lugar? Vagueio dentro de mim à busca, tal qual cachorro caça o próprio rabo, de perguntas que não precisam de respostas. E passo horas sentado inerte, absorto em obrigações e teatros. A luz fluorescente e o zunzum ambiente potencializam a letargia e a vontade de fugir (da necessidade de ficar).

Traçando um paralelo entre "Viagem a Ixtlan" e "Nove noites"

Em 1971, Carlos Castañeda lança Uma estranha realidade, o segundo livro da trilogia iniciada com A erva do diabo (1968), seguido por Viagem a Ixtlan (1972).

O autor relata, baseado em seu processo de aprendizagem com o brujo Dom Juan, a necessidade de distinguir as maneiras de se interpretar o mundo, diferenciadas entre 'ver' e 'olhar': "Aparentemente, no seu sistema de conhecimento havia a possibilidade de estabelecer-se uma diferença semântica entre 'ver' e 'olhar' como duas maneiras distintas de perceber. 'Olhar' referia-se a qualquer maneira comum em que estejamos acostumados a perceber o mundo, enquanto 'ver' encerra um processo muito complexo, em virtude do qual um homem de conhecimento supostamente percebe a 'essência' das coisas do mundo."

Bernardo Carvalho, com Nove noites, leva o leitor a se questionar, de maneira indireta, sobre o que é ou não é real nas coisas que conhecemos, entendemos ou esperamos do mundo. Sua história flutua sempre entre aspectos ora autobiográficos, ora documentais ou, simplesmente, ficcionais. Deixa o leitor assumir as rédeas que conduzem a trama solicitando que ele desvende por si só os mistérios propostos. Bernardo Carvalho confunde; oscila; parte da verdade para privilegiar o que ela guarda de falso, de ambíguo – sua história mexe com lembranças (suas e de elementos da pesquisa) que guardam verdades, mentiras e verdades mal-contadas... utiliza-se de realismo simulado.

Fazendo um paralelo entre os dois autores, percebemos que os ensinamentos do índio yaqui Dom Juan não são limitados à esfera do misticismo, e sim perpassam nosso sofisticado questionamento acerca da metafísica e do realismo pós-moderno. Simplesmente 'olhar' a trama de Nove noites é angustiar-se com a procura pelo motivo que levou Buell Quain ao suicídio e frustrar-se com o final da narrativa – que, por que diabos, não traz uma resposta?! – deixando empoeirar, terminada a leitura, o livro no canto da prateleira. Porém, 'ver' proporciona inquietação a respeito das múltiplas realidades apresentadas no texto, das quebras de referencialidade, das mais diferentes versões e possibilidades que pretendem contar e explicar um mesmo fato – e como estas variações não garantem que se chegue à verdade!

Já em Viagem a Ixtlan, Dom Juan propõe a Castañeda que ele largue sua "história pessoal" de modo a ser livre das ideias que os outros possuíssem dele, assim como a perder a obrigação de ter sempre que as renovar, dar satisfações ou obrigar-se a corresponder às expectativas alheias, e sugere: "Pouco a pouco, deve criar uma névoa em torno de si; deve apagar tudo em volta de si até que nada possa ser considerado coisa sabida, até não haver nada de certo nem de real."

Buell Quain, que – na obra de Bernardo Carvalho, e até onde se sabe – não tinha nada de feiticeiro, foi exímio na arte de apagar sua "história pessoal"! Há uma névoa espessa entorno de sua identidade real. Tão grossa que, em Nove noites, o autor conta-nos sobre suas múltiplas identidades partindo das percepções diversas daqueles que conheceram (direta ou indiretamente) o etnólogo americano. Não há verdades absolutas a seu respeito, assim como não há mentiras. Restaram a névoa, as impressões e a imaginação (do autor e do leitor).

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Viagem

(Martin L.)

Muitos cânions percorri
Mas só em seus caminhos me encontrei

Do topo do monte,
Tenho a vista mais bela
Faço a curva, passo a relva
Tudo é você no horizonte

São rotas perfeitas esperando a minha boca
O vale, a planície, a gruta e cada gota...

O mistério mora na caverna.
Como na igreja canta o sino,
Tocar você é música eterna.

Escalo seus lisos montes,
Os caminhos são frondosos
A fitar-me, doces fontes
De meandros perigosos

Da soberania de seus lábios ao vale do seu colo
Deslizo por seu dorso, viajo em quente solo

Que linda exploração!
Quanto que aprendi!!!
Do desejo ao coração,
Que esta viagem não acabe por aqui...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ingênua pretensão

Você alguma vez pediu desculpas?
Pelo egoísmo? Pela imprudência?
Você alguma vez se deu conta do que faz?
Por manipular? Por brincar?
Você, em algum momento qualquer, já foi ferida?
Por amar? Por se entregar?

Você já chorou e dormiu?
Na solidão? No desespero?
Você já quis correr sem destino?
Na angústia? No arrependimento?
Você, ao menos uma vez, pensou no próximo?
Em seu carinho? Em seus sentimentos?

A porta da minha vida é logo ali
Escolha entrar ou sair
Mas não peça para passar uns dias no sofá
Não diga que não sabia que iria me magoar

Você escolheu jogar?
Deslealmente? Inconsequentemente?
Você desistiu de tentar?
Facilmente? Conscientemente?
Você, algum dia, me quis?
De verdade? Por inteira?

Você percebe meu olhar
Carente ou de desprezo?
Você sente o que está no ar?
A indiferença ou a tristeza?
Você, ainda nesta vida, conseguirá entender
A decepção ou o alívio?

A porta da minha vida é logo ali
Dou-lhe 10 segundos para decidir
Esteja certa da decisão que irá tomar
Chegou ao fim meu tempo de chorar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

"Eu somos muitos..."

As pedras nuas da encosta, um ambulante com isopor, pescadores estrategicamente dispostos no promontório, alguns casais namorando. Quase seis e meia da tarde e o sol esconde-se a oeste do Morro Dois Irmãos. Mariana aplaude. Mariana e mais toda a juventude que ali residiu esperando o ocaso.

Não é de seu costume, o Arpoador não faz parte de sua rotina, apesar de ser seu ‘lugar mágico’, mas ela foi buscar no voo silencioso dos pássaros sob o céu de verão, no entristecer do sol e nas ondas ritmadas quebrando nas pedras o conforto que talvez pudesse aquietar sua alma.

Um senhor distinto, esguio, com monóculo e chapéu fora de moda, terno vincado e sapato envernizado sentou-se ao seu lado. Absorta em sua angústia, Mariana nem o notou.

- Com licença. Posso fazer-te companhia? – e ao deparar-se com figura tão ímpar, ainda tonta e sem saber exatamente se seria a ela a quem o estranho se dirigia, respondeu afirmativamente com um balançar de pescoço.

- Realmente bela a paisagem... mas a beleza está dentro de quem vê; tudo não passa de representação de si mesmo e de suas percepções das coisas...

Antes que pudesse completar o raciocínio, Mariana interrompeu-o, precisava ter certeza de que era ela mesma quem o forasteiro procurava.

- Senhor... não entendo. O que quer dizer? Por que aqui? Por que eu? – e retirando o chapéu da cabeça, acendendo uma cigarrilha que não se fabricava desde 1920, respondeu: “Álvaro de Campos, eu próprio. Mas eu somos muitos...”

Não, ela não entendia o que se passava, muito menos como ‘eu’ poderia ser vários. Tinha medo e receio, mas via-se absorta pelo encanto do homem longilíneo, pela figura tão atemporal quanto o próprio tempo, pelo sotaque e a suposta erudição.

- Por que estás só e não com todas as outras de ti? Viestes aqui para ouvir respostas surdas enquanto o verdadeiro debate faz-se em su’alma... Não se afigura menina besta ou cabeça de vento... O sol fala contigo para que ouça Joana, Antônia, Priscila...

- Mas chamo-me Mariana! Quem são Joana e todas essas que insiste em chamar de mim?

- “Sê plural como o universo!” e quem mo disse fora Fernando Pessoa... Conheces? Mesmo que não... tu sabes o que quero dizer com pluralidade, com nunca estar só.

- “Porque eu me canso de ouvir e discordar de tantos ecos de mim”... é o que diz uma música que adoro... é o que sinto o tempo todo!!! E, sim... vim para as pedras para escutar respostas do silêncio, para ler no movimento incessante das águas a clara evidência de que a vida não para, por mais que se renove, para entender que solidão é estado de espírito, e não necessariamente condição social...

Apontando para o mar, o senhor sinalizava para um rapaz além da arrebentação, sentado sobre sua prancha. Escurecia.

- Lá – ainda apontando – é o compartilhamento da solidão: com o mar, com as aves, os peixes, o vento, o céu, a força que rege as ondas, com a prancha, com o próprio espírito que está em si dialogando com tudo ao redor... ele está só mas nunca sozinho!

- O senhor entende de surfe?! – perguntou uma Mariana entre o escárnio e o espanto!

- Não, não – sorriu. Entendo do homem, e a próxima onda trouxe o rapaz para a areia, demovendo-o para o convívio além de si mesmo. Vamos caminhar!

Partiram pelo calçadão de Ipanema em um final de tarde de verão.

- Tente fechar os olhos...

- Mas assim eu vou cair! Vou tropeçar em alguém, alguma coisa...

- Não vais... Tente. E Mariana cerrou a vista perguntando-se por que obedecia ao desconhecido, sentindo a incerteza e o medo que um vidente tem do escuro. Percorreram alguns metros atentando para os sons, para as texturas e os cheiros.

- O poeta é uma antena que capta o mundo de maneira diferente... Nada acontecido é ignorado e tudo sentido passa pelo filtro da criação, assim, meu mundo é um, o teu é outro e ele repercute diferentemente para cada um de nós...

Sentiu-se mareada e com a rajada de vento despertou.

- Onde estão as pessoas?! – e o grito de Paula ecoou na paisagem erma embaçada pela maresia.

- Sentes o som de seu próprio peito? Percebes a música que há dentro de ti? Sufocas com o grave e alucinas com o agudo?...

Mais parecia uma anamnese! “Som do próprio peito?” Paula, ainda aturdida, reparou que o senhor já não era o mesmo... mas não o era desde as pedras; nunca fora. Ricardo Reis, pois, pôs-se a falar:

- Estás melhor? Deverias carregar menos o peso do mundo.

- Minhas responsabilidades não são muitas, é verdade, mas nada passa por mim sem causar danos. Tudo leva consigo as consequências dos desejos dos outros, das vontades alheias, daquilo que esperam de mim. Nada é impune.

- Pretendes amar, rapariga? Abdica e sê rei de ti mesmo. Não esperes que alguém supra as tuas ilusões ou as corresponda. Guarda para ti a visão que tens do outro. Estás vendo algo além de nós aqui? Não, pois não há nada no mundo que não seja ‘ideia acerca de’ e quando elas são desfeitas, nada sobra que não o vazio. Queres ter a lembrança de algo ou d’alguém?! Eterniza o momento! Faze do presente a única possibilidade sem que te preocupes com o após, pois dele receberás apenas incerteza e ingratidão, já que à decedura levarás contigo somente o corpo mitigado.

- ... mas tenho medo de sentir, posto que não sei relevar o medo do pós, muito menos dar o devido valor ao presente.

Sentaram-se ao piano na areia. Da tarde, resto de sol; da noite, sombras de estrelas desenhando a melodia a ser tocada.

- “Alla Turca”, de Mozart, um Rondó clássico em Allegretto, 2º movimento da Sonata em Lá Maior, K331. Ouve e sente.

Uma Paula contrariada conteve a exasperação e deixou-se sentir, ao menos naquele instante. A música despertou-a para um transe; seu corpo todo formiguejava e sentia-se imolando aos deuses em uma dança dionisíaca – mais grega que Eurídice de Orfeu! A música tocava-lhe o corpo como já lhe enamorara o espírito.

- A vida é o instante que segue o agora, e a morte é o segundo transcorrido. Viver é uma missão hedônica...

Uma chuva tinhosa precipitou desmanchando o piano. Clara correu para abrigar-se e perdeu seu amigo de vista – Ipanema, em noite de verão, é sempre muito movimentada. Sentiu-se poeta, sentiu-se bolinar as emoções; perdeu-se de si, encontrou-se no outro; amou a água que caía e seu reflexo na que jazia sobre chão. Pôde ver mil faces de si própria – umas familiares, outras adventícias. Entendeu que a imagem é apenas representação do que acreditamos que algo seja e que, entretanto, pode ser até mais real do que a realidade.

E correu. Correu sozinha, correu com suas tantas, correu com o mundo que carregava em descobertas. Correu para longe, desviando dos carros, esbarrando em pessoas. Correu até não mais reconhecer onde estava e avistou um porto. Sentado no deque estava um senhor... Clara reconheceu o homem de uma existência que até há pouco era sua originalmente. Ainda molhada de chuva, ainda esbaforida, percebeu que o cavalheiro mantivera-se inalterado: roupas secas, chapéu alinhado, sapato envernizado com calça vincada. O mesmo gesto, o mesmo movimento para acender sua cigarrilha e os pés balouçantes dispensados no ar.

- Aqui, as emoções são paradoxais: o porto que recebe um navio e finda a saudade do marinheiro e de sua amada é, também, o mesmo porto que faz partir para o desconhecido, deixando para trás a beleza da incerteza.

- Senhor Álvaro... o senhor sempre fala sozinho?! – Clara mal podia segurar os próprios risos. Como o senhor chegou até aqui? Como eu cheguei até aqui?!

- Da senhorita, não o sei ou posso dizer, mas acredito que já tenha tido dias melhores – retrucou com sarcasmo. Eu vim como todos que aqui aportam: através do mar da saudade.

- Dias melhores? – olhou-se amarrotada. Também cheguei – desconfio – pela saudade... Daquele que nunca amei, daquilo que nunca vivi, dos que não ajudei... Devo esperá-los aqui?

- O porto da vida é grande e nem sempre sabemos o que está a ancorar. Sede arguta e não deixes escapar os navios que em tua sorte aportarem.

Vistas apontadas para o horizonte que nascia. Para a jovem, um dia parcialmente nublado, para o cavalheiro, um dia parcialmente ensolarado.

- O que se vê não é o que é.

- Ora! Mas se não vejo o que vejo, o que estou vendo então?!

- Não há paisagem que não venha pela interseção de um sonho. Vês o que imaginas por determinada coisa. Vedes este céu que por sobre nós clareia. Entende-o por nublado pois assim lhos são os sentimentos. A imagem vem sempre antes de a coisa existir em si.

- ... Hm... como o tigre...

- Perdoa... que tigre?

- O tigre do zoológico! Já foi a um zoológico? A visão da jaula é tão linda que parece mesmo com desenhos de catálogo de tatuagem. A ironia está no fato de que os desenhos de tatuagem vieram do real, de sua representação, e não o contrário, porém, o que fica – já que não vemos comumente nas ruas tigres em poses artísticas – é justamente a imagem mais difundida que substitui a outra. É a virada pictórica!

- És batuta, rapariga!... Tens sonhos?

- Não sei se é sonho, mas gostaria de escrever. Como a chuva de há pouco, despejar cada gota como uma letra, uma palavra...

- Entende a chuva oblíqua? – feito o gesto.

- Entende a minha? – e Clara fez postura de pianista diante um teclado de computador. É assim que minha chuva cai e surge música do dedilhado e de cada caracter visualizado.

- Tua música soa mais bela por ter sempre um muro branco a ser preenchido.

- Mas é apenas sonho...

Com gesto imperativo, o homem levantou-se e ordenou que a menina fizesse o mesmo. Giraram. Estavam na pista de voo livre da Pedra da Gávea – o dia ensolarara-se.

“A vida é toda sonho.”

De supetão, como um soluço, a verdade com a qual se deparara era assustadora: e se nada for real?! “Como podemos coexistir? Como vamos amar e respeitar?” E lembrou-se de quantas não foram as vezes em que teve que assumir a culpa por, supostamente, ter ‘confundido’ os sentimentos e interpretado mal as ações. Pensou na relação com seus pais e em sua casa, em como os espaços dificilmente eram respeitados. Levou o raciocínio para sua vida social e deparou-se com um universo de possibilidades, ambições e objetivos que seriam os sonhos de seus amigos, ao passo que também entendeu que nem sempre o caminho para a realização destes seja o mais limpo.

- É por isso que ninguém se entende, que o mundo está sempre em guerra, que as relações humanas estão cada vez mais doentias, que a natureza é tão mãe quanto Pandora...

Assim, Letícia fechou os olhos, abriu os braços e saltou. Viu as coisas do mundo, sentiu todas as dores e os amores também! Refestelou-se no gramado mais verdejante sob a sombra de um grande carvalho; comeu da fruta mais doce com o carinho do vento no rosto. Assistiu a bombardeios do chão quente ao seu redor. Escutou os sons da vida: o choro do bebê, o barulho da buzina, a voz de quem se ama, vidro quebrando, amor acabando, coração batendo e coração parando de bater.

Abriu os olhos lentamente... Final de tarde de uma dia de verão. Ao sol ainda restava suficiente força para incomodar a visão. Demorou-se alguns minutos para ajeitar, retornar a si e, finalmente, realizar onde se encontrava.

Encosta de pedras nuas, alguns ambulantes com isopor, pescadores estrategicamente dispostos no promontório, muitos casais namorando. Fazia um dia especialmente belo e o pôr do sol recebeu atenção redobrada.

Aplaudindo com um furor nunca dantes experienciado, Mariana percebeu-se acompanhada: espalhados pelas pedras, seus amigos Álvaro e Ricardo, assim como todos os outros ‘eles’ que vivem em um e seus outros ‘eu’, Paula, Clara, Letícia, Amanda, Júlia...

Todos carregamos em nós uma humanidade particular e todas aplaudem o pôr do sol.