terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Para ser (ou como parecer) intelectual

Funciona mais ou menos assim: os únicos pré-requisitos são uma roda de amigos e quantidades industriais de álcool — porque ninguém é intelectual apenas para si mesmo e gente bêbada é muito impressionável.

Primeiro, assuma um ar pedante e use palavras difíceis — para o intelectual, toda e qualquer opinião de terceiros (desde que estes não sejam referências bibliográficas!) é simplória, inconsistente e tende a ser desconsiderada de antemão. Já o vocabulário exótico provoca desconforto nos demais ouvintes, pois lhes incute a sensação de que o interlocutor possui uma cultura específica, um refinamento de ideias e leituras.

Este último não deixa de ser verdade, visto que em determinado momento da conferência, preferencialmente quando o álcool já estiver agindo depreciativamente nas capacidades motora e congnitiva dos demais, você citará um autor inexistente, cuja "obra de referência" — igualmente fictícia — possua um título academicamente viável mas totalmente sem sentido — o que, invariavelmente, despertará admiração em seus ouvintes. É simples: adapte o nome de alguma doença estranha e acrescente o sufixo ov, por exemplo "Leshimaniov". As pessoas respeitam muito os autores russos. Se achar que inventar um autor francês possa ser mais convincente, sugiro algo como Jean-Michell Réveillé — as pessoas também respeitam muito os autores franceses, e autores franceses geralmente possuem Jean no nome. Para o título do livro, utilize palavras comuns ao meio acadêmico, o que formará absurdos como: A estética do amor em espiral. Se quiser impressionar ainda mais, crie, também, um subtítulo. As pessoas respeitam muito livros com título e subtítulo.

O próximo passo é "explicar" superficialmente a ideia que a "obra" desenvolve. Como ninguém nunca terá ouvido falar em tal trabalho, sua missão será bastante facilitada: misture atores famosos de diferentes áreas do conhecimento e discorra sobre suas teorias — é importante frisar que todo o movimento deve ser, impreterivelmente, superficial, de forma a evitar questionamentos por parte de algum dos ouvintes. Cite, também, outros nomes importantes conhecidos do grande público, sempre os introduzindo pela conjunção segundo:

... Leshimaniov parte do espiral — que é a dialética de Hegel. Nós temos a thésis, a antithésis e a síntese. Esta resulta em uma nova tese, o que dá continuidade ao ciclo. O que o livro apresenta é que o Eterno Retorno, de Nietzsche, se aplica nesse ciclo involutário e infidável, porém, segundo Lacan, toda repetição é diferente, o que faz com que mantenhamos padrões de relações, não obstante gerando antíteses para as novas teses que se formam a partir das sínteses anteriores...

Obtido o efeito de impressionamento, finalize o assunto com a desculpa óbvia para a ocasião:

... É um assunto muito complexo para o momento, mas acho que deu para trazer um pouquinho de informação à mesa.

Não se preocupe. Ninguém se lembrará de nada profundamente no dia seguinte, mas com certeza ficará a impressão de que você é efetivamente um intelectual, um ser iniciado em conhecimentos que poucos têm paciência para aturar sóbrios.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Diversão não é felicidade

01/09/2008 11:43

Diversão não é felicidade. Demorei para perceber isto.

Em uma maratona de encontros com amigos, cujo combustível principal para o avivamento dos ânimos não é outro senão cerveja, tenho realizado que as seguidas noites de infindáveis risadas, conversas non-sense, abraços afetuosos e extrema diversão não fazem os meus dias mais felizes. Acordo, invariavelmente, com uma sensação de vazio.

Sou ansiosa; muito. Não sei lidar com a ausência, com o preenchimento da falta pela fantasia, pelas vozes de minha cabeça, pelos diálogos que nunca se realizam, pelas imagens criadas através do desejo, assim como das lembranças devidamente 'editadas' pela memória.

O celular tornou-se um símbolo de opressão, então, para desconcentrar da espera pela mensagem que nunca chega ou para fugir da ligação de sempre, bebo. Ou melhor, saio. A intenção primordial é distrair-me, a bebida é consequência; ou vice-versa! E dá certo até determinado ponto! Realmente tendo a ignorar a existência do aparelhinho e de tudo, e de todos, que ele traz consigo em forma de expectativas, mas o olhar mantém-se distante e à procura, numa constante espera.

Muitos e muitos cigarros depois, e aquele fedor impregnado nos cabelos, nas roupas, nos dedos e no hálito, o dia seguinte começa quase sempre com uma série de perguntas e culpas: será que mandei mensagem e não lembro? (corro para conferir!); falei muita besteira? Fui muito enfática? Ontem foi bom, mas por que estou triste hoje? Meu Deus! Eu não tinha a menor intimidade com fulano para falar as coisas que falei!!!... e por assim vai.

A diversão se esvai, é finda, frívola. É um momento que não dura, evapora. Sinto-me comprando um conforto efêmero a um preço muito alto. Não obstante, em nada adiantaria, também, ficar em casa imersa em angústia, oras! A opção pela abstração, apesar de parecer, não é sinonímia de alienação. Há de se pensar sobre si mesmo; há de se falar sobre as agruras. A cura vem através da fala – eis o caminho básico da psicanálise. Mas quando a língua começa a enrolar é sinal de que a hora de voltar para casa já passou faz tempo!

O olhar 'ressaquento' dos dias seguintes e o inalterável semblante blasé tornaram-se peças do meu vestuário. A indiferença que, sem querer, demonstro pelas coisas faz de mim uma pessoa aparentemente arrogante, enquanto esconde a falta de tesão e de objetivo na vida. A ausência de luz no meu olhar é o reflexo de um fígado pré-cirrótico e de pulmões esfumaçados, mas também de músculos faciais e abdominais cada vez mais enrijecidos!

A diversão pode não trazer consigo a felicidade, mas serve para afastar, mesmo que por longos e preciosos instantes, a tristeza...

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Carta ao Prof. Sírio Possenti – sobre seu artigo "Deslizes de celebridade", revista Língua Portuguesa, n. 48

Boa tarde, professor Possenti

(...)

Acabo de receber minha edição da revista Língua Portuguesa n. 48 e ler seu artigo na seção 'Ortografia' sobre o debate acerca do 'deslize' cometido pela 'célebre' Sasha no Twitter. Neste momento, sinto-me impelida a participar da discussão. Gostaria de relatar ao senhor o que venho refletindo sobre a questão da ortografia, tentando, deste modo, trazer – mesmo que de forma despretensiosa – um complemento às suas ideias – se o professor assim mo permitir.

Coincidentemente, ontem à noite, durante a primeira aula de um curso de revisão de texto, complementar à faculdade que estou frequentando, o assunto 'erro ortográfico da Sasha' entrou em pauta. O deboche foi consenso entre os demais participantes. Não houve aluno – quase todos já formados em Letras ou Jornalismo – que não esboçasse uma tirada preconceituosa, um comentário depreciativo. Como o senhor muito bem colocou em seu texto, indivíduos que "se sentem autorizados a julgar a capacidade de pessoas que cometem erros ortográficos" e, no caso da aula de ontem, agem "sem demonstrar competência para a análise do sistema de escrita, análise que poderia explicar a natureza e a razão do erro". Fiquei incomodada.

Muito se discute sobre a influência dos novos meios instantâneos de comunicação no uso e na mutação da língua portuguesa. Há quem acuse o 'internetês' de estar matando o português. Particularmente, minha veia mais liberal discorda de tanto alarde. Uma língua só é viva se estiver em constante mutação; ponto para a expansão das oportunidades de exercício da escrita, da leitura e da criatividade. Já o meu viés conservador, aquele que gosta de Machado de Assis e tem como ofício a revisão de textos, se ressente de tantas abreviações e aglutinações. Mas, ok, nada disso importa verdadeiramente. A questão central é que estas novas ferramentas de comunicação – MSN, Gtalk, Twitter, Skype, etc. – trazem para o mundo visual uma reprodução do que costumava ser, quase exclusivamente, auditivo. Todos esses messengers da vida tendem a reproduzir a fala! E tal como o som, pouco importa se 'cena' é escrito com 's' ou com 'c'.

Gostaria de reforçar para o senhor que concordo que, por estar em meios escritos, esse tipo de equívoco constitui, sim, erro, mas não grave. Sério mesmo é quando alguém escreve 'voçê' assim, com cedilha! Esta pessoa está 'atropelando' a língua, pois desconhece a essência da regra. Confusões sonoras/ortográficas são, como o professor exemplificou, de cunho etimológico e legal, o que foge, muitas vezes, à lógica. Como explicar para uma criança ou para um estrangeiro em processo de aprendizagem de nossa língua que o 'x' – coitado, tão plural... – possui quatro, cinco sons diferentes? E, outro exemplo, que há três formas de escrever 'sessão/cessão/seção', e que TODAS são pronunciadas da mesma maneira?

Grafar 'cena' ou 'sena' importa pouco quando estamos utilizando um meio não formal que reproduza a fala – não que eu ache que os erros não devam ser revistos e consertados, o que critico é justamente o alarde. Outro exemplo recente foi a confusão envolvendo o jornalista William Bonner e a ex-BBB Milena Fagundes. Por pressa ou falta de atenção, mas certamente não por desconhecimento, Bonner grafou a palavra 'ia' com acento agudo no 'i'. Pergunto: quantos de nós nunca fizemos isso? Ainda procuro candidato que comprove tal façanha. Esse acento no 'i' é 'natural', pois está na nossa fala – é tônico por regra e por ênfase. Porém, citando a tal regra, não leva acento gráfico por ser uma palavra paroxítona terminada em 'a'. Bonner errou, mas quem sofreu retaliações foi a pobre da moça que 'ousou' corrigir o tão experiente jornalista e escritor. Assim como o senhor aponta em seu artigo, eis outro caso em que as pessoas se sentem no direito do julgar os outros baseando suas acusações no uso correto ou não da língua portuguesa. Nesse caso especificamente, o ataque foi direcionado a quem fez a correção, justamente por seus perseguidores entenderem que uma ex-BBB não seja alguém qualificado para corrigir ortograficamente ninguém.

Fugindo um pouco da discussão sobre os meios virtuais, mas ainda na análise da flexibilidade sobre os deslizes ortográficos, certa vez deparei-me com a seguinte frase pintada no muro de uma favela: "PMs assacinos!". Retive-me analisando o texto por alguns instantes – apenas alguns, pois não era lugar para ficar exatamente parada por muito tempo! A primeira sensação foi a de estranhamento, de desconforto. Os olhos que conhecem a palavra têm dificuldade não de entender o escrito, mas de o reconhecer como certo – juntar o significante, neste caso errado, com o significado. Já o momento seguinte foi de júbilo! Saí de lá maravilhada com o que acabara de presenciar. O cidadão revoltado – certamente com seus motivos para tal, mesmo que eu não concorde inteiramente com o texto – foi extremamente preciso na informação sonora que desejava passar. Ele não sabia escrever 'assassinos', assim com tantos esses!, mas sabia exatamente que o som era o mesmo que o produzido pelo 'c' antes de 'e' ou 'i'. Ele não escreveu 'assasinos' ou 'assaçinos'. Entendo que seja uma diferença grande, e eis o motivo de meu regozijo.

Assim como devemos considerar a pouca idade da Sasha, sua falta de experiência e, possivelmente, leitura para relevarmos seu 'erro', também é preciso levar em conta o contexto socioeducativo do sujeito que manifestou sua revolta por escrito no muro da sua comunidade! Tanto ele quanto a filha da Xuxa fizeram reproduções escritas fiéis dos sons de suas falas, mesmo que essas não tenham obedecido às regras ortográficas.

"A língua [ou o uso que fazemos dela] é a primeira forma de discriminação social", disse-me certa vez meu professor de português do colégio. Nunca esqueci esta fala, tentando levar para o resto da vida a não reprodução de um preconceito – assim como todos os outros – tão medonho.

(...)

Um abraço.
TC

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Pescando sandices por aí...

Definitivamente, não dá para compreender certas coisas do mundo:

  • pai é preso por beijar a filha na boca – o ato 'obsceno' foi o popular estalinho;

  • mãe é presa por suspeita de atirar a filha em rio na Itália;

  • criança é encontrada morta dentro de aparelho de micro-ondas – e isso aparentemente foi uma fatalidade;

  • cadernetas de poupança com valores acima de 50 mil reais serão taxadas em 22,5%!!!;

  • tomar banho de chuveiro pode fazer mal à saúde, diz estudo;

  • em recente negociação com a Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos (Fentect), a ECT, a fim de evitar uma então iminente greve (hoje, real!), apresentou uma proposta que foi rejeitada em todos os sindicatos. A empresa ofereceu, de acordo com a federação, R$ 0,90 de acréscimo no vale refeição e 4,5% de reajuste salarial;

  • se consumido em excesso, o glúten pode causar depressão... – a pergunta que fica é: o que não causa?!

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O mundo das medidas

01/12/2007 12:06

Muito me assustam o poder e a rapidez com que as inovações tecnológicas invadem nossas vidas!...
Passamos a recalcular todas as medidas, e os espaços tornaram-se, devido à latente possibilidade, aguardantes das maravilhas industriais. Casas com garagem, edifícios com garagens (dois, três andares; carros empilhados); as larguras das ruas foram adaptadas para comportar a circulação média de dois veículos lada a lado, considerando estacionamento regular à esquerda e paradas de ônibus à direita. As mesas de estudos nos quartos dos jovens modificaram-se em tamanho e forma para receber aparatos cibernéticos; tantas novas palavras ocupando um antigo espaço, facilitando uma mesma função. Até as mochilas atualmente possuem bolsos acessórios e passagem para o fone de ouvido de tocadores de música e telefones portáteis de qualquer espécie. É quase impossível conceber um transeunte que não leve consigo alguma dessas inovações.
Acrescentam-se aí mais duas medidas em mutação: a do silêncio e a da solidão. Nunca estamos sós ou nunca estivemos tão sós! Vozes fazem-nos companhia constantemente, tornando-nos majoritariamente disponíveis, privando-nos de nossa privacidade, compondo-nos a trilha sonora de nossos dias; mas excluem-nos da presença presente do outro, do som em meio ao hálito quente, do fazer sentir através do tocar.
Estamos sempre com pressa e as medidas do tempo e da distância também se confundem e se abstraem. Um trem sob a terra encurta-nos o trabalho de muitas combustões e nos faz crer que a distância entre dois extremos da cidade pode ser calculada em minutos. O oceano inteiro que nos separa do velho continente reduziu-se a dois cafés, três refeições, uma taça de vinho e duas latinhas de refrigerante; uma revista bi ou trilíngue, banheiro apertado e a dor da despressurização nos tímpanos. Pode-se também viajar sem sair de casa: a escrivaninha devidamente aparelhada permite-nos estar em toda e qualquer parte do mundo sem que para isso precisemos tirar os pijamas e limpar as remelas.
Tal magnificência tecnológica desmantela a medida do amor. A virtualidade legitima a impostura dos amantes, as falsas verdades, as ilusões intencionais. Pode-se conquistar vinte, amar dez e nunca estar com nenhuma – e mesmo assim sentir-se realizado com isso. Ficcionalizam-se mais as relações, ainda que haja a ilusão da proximidade provocada pela projeção da imagem do amado, borrado, ‘pixelizado’, ‘giga-hertzamente’ interferido na tela diante de si.
Ah, como o mundo das máquinas e das possibilidades altera a medida de si! Melhor caráter possui quem dirige um bom carro; é a mulher mais bonita aquela que melhor for ‘editada’ – e as demais mortais que se matem para se metamorfosearem no ideal. Estampamos arbitrariamente por aí nossos rostos, nossas ideias, nossos cachorros e o resto da família para satisfazer o ego e ocupar um espaço fabricado e não físico de estabelecimento de relações, justamente concebido para duplicarmos a vida que levamos modificando-a – uma caridosa ilusão de esperança.
Perdeu-se a medida do respeito através do grito da buzina, do ficar parado na porta do vagão do metrô mesmo quando não se vai saltar na estação; através da secretária eletrônica que responde por nós, do telefone que toca durante o filme. Extinguiu-se a medida do afeto quando deixamos de escrever beijo para digitar bj.