segunda-feira, 9 de agosto de 2010

"Eu somos muitos..."

As pedras nuas da encosta, um ambulante com isopor, pescadores estrategicamente dispostos no promontório, alguns casais namorando. Quase seis e meia da tarde e o sol esconde-se a oeste do Morro Dois Irmãos. Mariana aplaude. Mariana e mais toda a juventude que ali residiu esperando o ocaso.

Não é de seu costume, o Arpoador não faz parte de sua rotina, apesar de ser seu ‘lugar mágico’, mas ela foi buscar no voo silencioso dos pássaros sob o céu de verão, no entristecer do sol e nas ondas ritmadas quebrando nas pedras o conforto que talvez pudesse aquietar sua alma.

Um senhor distinto, esguio, com monóculo e chapéu fora de moda, terno vincado e sapato envernizado sentou-se ao seu lado. Absorta em sua angústia, Mariana nem o notou.

- Com licença. Posso fazer-te companhia? – e ao deparar-se com figura tão ímpar, ainda tonta e sem saber exatamente se seria a ela a quem o estranho se dirigia, respondeu afirmativamente com um balançar de pescoço.

- Realmente bela a paisagem... mas a beleza está dentro de quem vê; tudo não passa de representação de si mesmo e de suas percepções das coisas...

Antes que pudesse completar o raciocínio, Mariana interrompeu-o, precisava ter certeza de que era ela mesma quem o forasteiro procurava.

- Senhor... não entendo. O que quer dizer? Por que aqui? Por que eu? – e retirando o chapéu da cabeça, acendendo uma cigarrilha que não se fabricava desde 1920, respondeu: “Álvaro de Campos, eu próprio. Mas eu somos muitos...”

Não, ela não entendia o que se passava, muito menos como ‘eu’ poderia ser vários. Tinha medo e receio, mas via-se absorta pelo encanto do homem longilíneo, pela figura tão atemporal quanto o próprio tempo, pelo sotaque e a suposta erudição.

- Por que estás só e não com todas as outras de ti? Viestes aqui para ouvir respostas surdas enquanto o verdadeiro debate faz-se em su’alma... Não se afigura menina besta ou cabeça de vento... O sol fala contigo para que ouça Joana, Antônia, Priscila...

- Mas chamo-me Mariana! Quem são Joana e todas essas que insiste em chamar de mim?

- “Sê plural como o universo!” e quem mo disse fora Fernando Pessoa... Conheces? Mesmo que não... tu sabes o que quero dizer com pluralidade, com nunca estar só.

- “Porque eu me canso de ouvir e discordar de tantos ecos de mim”... é o que diz uma música que adoro... é o que sinto o tempo todo!!! E, sim... vim para as pedras para escutar respostas do silêncio, para ler no movimento incessante das águas a clara evidência de que a vida não para, por mais que se renove, para entender que solidão é estado de espírito, e não necessariamente condição social...

Apontando para o mar, o senhor sinalizava para um rapaz além da arrebentação, sentado sobre sua prancha. Escurecia.

- Lá – ainda apontando – é o compartilhamento da solidão: com o mar, com as aves, os peixes, o vento, o céu, a força que rege as ondas, com a prancha, com o próprio espírito que está em si dialogando com tudo ao redor... ele está só mas nunca sozinho!

- O senhor entende de surfe?! – perguntou uma Mariana entre o escárnio e o espanto!

- Não, não – sorriu. Entendo do homem, e a próxima onda trouxe o rapaz para a areia, demovendo-o para o convívio além de si mesmo. Vamos caminhar!

Partiram pelo calçadão de Ipanema em um final de tarde de verão.

- Tente fechar os olhos...

- Mas assim eu vou cair! Vou tropeçar em alguém, alguma coisa...

- Não vais... Tente. E Mariana cerrou a vista perguntando-se por que obedecia ao desconhecido, sentindo a incerteza e o medo que um vidente tem do escuro. Percorreram alguns metros atentando para os sons, para as texturas e os cheiros.

- O poeta é uma antena que capta o mundo de maneira diferente... Nada acontecido é ignorado e tudo sentido passa pelo filtro da criação, assim, meu mundo é um, o teu é outro e ele repercute diferentemente para cada um de nós...

Sentiu-se mareada e com a rajada de vento despertou.

- Onde estão as pessoas?! – e o grito de Paula ecoou na paisagem erma embaçada pela maresia.

- Sentes o som de seu próprio peito? Percebes a música que há dentro de ti? Sufocas com o grave e alucinas com o agudo?...

Mais parecia uma anamnese! “Som do próprio peito?” Paula, ainda aturdida, reparou que o senhor já não era o mesmo... mas não o era desde as pedras; nunca fora. Ricardo Reis, pois, pôs-se a falar:

- Estás melhor? Deverias carregar menos o peso do mundo.

- Minhas responsabilidades não são muitas, é verdade, mas nada passa por mim sem causar danos. Tudo leva consigo as consequências dos desejos dos outros, das vontades alheias, daquilo que esperam de mim. Nada é impune.

- Pretendes amar, rapariga? Abdica e sê rei de ti mesmo. Não esperes que alguém supra as tuas ilusões ou as corresponda. Guarda para ti a visão que tens do outro. Estás vendo algo além de nós aqui? Não, pois não há nada no mundo que não seja ‘ideia acerca de’ e quando elas são desfeitas, nada sobra que não o vazio. Queres ter a lembrança de algo ou d’alguém?! Eterniza o momento! Faze do presente a única possibilidade sem que te preocupes com o após, pois dele receberás apenas incerteza e ingratidão, já que à decedura levarás contigo somente o corpo mitigado.

- ... mas tenho medo de sentir, posto que não sei relevar o medo do pós, muito menos dar o devido valor ao presente.

Sentaram-se ao piano na areia. Da tarde, resto de sol; da noite, sombras de estrelas desenhando a melodia a ser tocada.

- “Alla Turca”, de Mozart, um Rondó clássico em Allegretto, 2º movimento da Sonata em Lá Maior, K331. Ouve e sente.

Uma Paula contrariada conteve a exasperação e deixou-se sentir, ao menos naquele instante. A música despertou-a para um transe; seu corpo todo formiguejava e sentia-se imolando aos deuses em uma dança dionisíaca – mais grega que Eurídice de Orfeu! A música tocava-lhe o corpo como já lhe enamorara o espírito.

- A vida é o instante que segue o agora, e a morte é o segundo transcorrido. Viver é uma missão hedônica...

Uma chuva tinhosa precipitou desmanchando o piano. Clara correu para abrigar-se e perdeu seu amigo de vista – Ipanema, em noite de verão, é sempre muito movimentada. Sentiu-se poeta, sentiu-se bolinar as emoções; perdeu-se de si, encontrou-se no outro; amou a água que caía e seu reflexo na que jazia sobre chão. Pôde ver mil faces de si própria – umas familiares, outras adventícias. Entendeu que a imagem é apenas representação do que acreditamos que algo seja e que, entretanto, pode ser até mais real do que a realidade.

E correu. Correu sozinha, correu com suas tantas, correu com o mundo que carregava em descobertas. Correu para longe, desviando dos carros, esbarrando em pessoas. Correu até não mais reconhecer onde estava e avistou um porto. Sentado no deque estava um senhor... Clara reconheceu o homem de uma existência que até há pouco era sua originalmente. Ainda molhada de chuva, ainda esbaforida, percebeu que o cavalheiro mantivera-se inalterado: roupas secas, chapéu alinhado, sapato envernizado com calça vincada. O mesmo gesto, o mesmo movimento para acender sua cigarrilha e os pés balouçantes dispensados no ar.

- Aqui, as emoções são paradoxais: o porto que recebe um navio e finda a saudade do marinheiro e de sua amada é, também, o mesmo porto que faz partir para o desconhecido, deixando para trás a beleza da incerteza.

- Senhor Álvaro... o senhor sempre fala sozinho?! – Clara mal podia segurar os próprios risos. Como o senhor chegou até aqui? Como eu cheguei até aqui?!

- Da senhorita, não o sei ou posso dizer, mas acredito que já tenha tido dias melhores – retrucou com sarcasmo. Eu vim como todos que aqui aportam: através do mar da saudade.

- Dias melhores? – olhou-se amarrotada. Também cheguei – desconfio – pela saudade... Daquele que nunca amei, daquilo que nunca vivi, dos que não ajudei... Devo esperá-los aqui?

- O porto da vida é grande e nem sempre sabemos o que está a ancorar. Sede arguta e não deixes escapar os navios que em tua sorte aportarem.

Vistas apontadas para o horizonte que nascia. Para a jovem, um dia parcialmente nublado, para o cavalheiro, um dia parcialmente ensolarado.

- O que se vê não é o que é.

- Ora! Mas se não vejo o que vejo, o que estou vendo então?!

- Não há paisagem que não venha pela interseção de um sonho. Vês o que imaginas por determinada coisa. Vedes este céu que por sobre nós clareia. Entende-o por nublado pois assim lhos são os sentimentos. A imagem vem sempre antes de a coisa existir em si.

- ... Hm... como o tigre...

- Perdoa... que tigre?

- O tigre do zoológico! Já foi a um zoológico? A visão da jaula é tão linda que parece mesmo com desenhos de catálogo de tatuagem. A ironia está no fato de que os desenhos de tatuagem vieram do real, de sua representação, e não o contrário, porém, o que fica – já que não vemos comumente nas ruas tigres em poses artísticas – é justamente a imagem mais difundida que substitui a outra. É a virada pictórica!

- És batuta, rapariga!... Tens sonhos?

- Não sei se é sonho, mas gostaria de escrever. Como a chuva de há pouco, despejar cada gota como uma letra, uma palavra...

- Entende a chuva oblíqua? – feito o gesto.

- Entende a minha? – e Clara fez postura de pianista diante um teclado de computador. É assim que minha chuva cai e surge música do dedilhado e de cada caracter visualizado.

- Tua música soa mais bela por ter sempre um muro branco a ser preenchido.

- Mas é apenas sonho...

Com gesto imperativo, o homem levantou-se e ordenou que a menina fizesse o mesmo. Giraram. Estavam na pista de voo livre da Pedra da Gávea – o dia ensolarara-se.

“A vida é toda sonho.”

De supetão, como um soluço, a verdade com a qual se deparara era assustadora: e se nada for real?! “Como podemos coexistir? Como vamos amar e respeitar?” E lembrou-se de quantas não foram as vezes em que teve que assumir a culpa por, supostamente, ter ‘confundido’ os sentimentos e interpretado mal as ações. Pensou na relação com seus pais e em sua casa, em como os espaços dificilmente eram respeitados. Levou o raciocínio para sua vida social e deparou-se com um universo de possibilidades, ambições e objetivos que seriam os sonhos de seus amigos, ao passo que também entendeu que nem sempre o caminho para a realização destes seja o mais limpo.

- É por isso que ninguém se entende, que o mundo está sempre em guerra, que as relações humanas estão cada vez mais doentias, que a natureza é tão mãe quanto Pandora...

Assim, Letícia fechou os olhos, abriu os braços e saltou. Viu as coisas do mundo, sentiu todas as dores e os amores também! Refestelou-se no gramado mais verdejante sob a sombra de um grande carvalho; comeu da fruta mais doce com o carinho do vento no rosto. Assistiu a bombardeios do chão quente ao seu redor. Escutou os sons da vida: o choro do bebê, o barulho da buzina, a voz de quem se ama, vidro quebrando, amor acabando, coração batendo e coração parando de bater.

Abriu os olhos lentamente... Final de tarde de uma dia de verão. Ao sol ainda restava suficiente força para incomodar a visão. Demorou-se alguns minutos para ajeitar, retornar a si e, finalmente, realizar onde se encontrava.

Encosta de pedras nuas, alguns ambulantes com isopor, pescadores estrategicamente dispostos no promontório, muitos casais namorando. Fazia um dia especialmente belo e o pôr do sol recebeu atenção redobrada.

Aplaudindo com um furor nunca dantes experienciado, Mariana percebeu-se acompanhada: espalhados pelas pedras, seus amigos Álvaro e Ricardo, assim como todos os outros ‘eles’ que vivem em um e seus outros ‘eu’, Paula, Clara, Letícia, Amanda, Júlia...

Todos carregamos em nós uma humanidade particular e todas aplaudem o pôr do sol.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Epifania machadiana

Certa vez conheci Capitu.

No insólito do estado inebriante, nos acordes indecifráveis e desimportantes, no rodopiar dos corpos e gingar de pernas, braços e sensações, as bocas tornaram-se unas, assim como os olhares, os pensamentos, os estados alterados de consciência. Eu já não era mais eu; ela já não respondia mais por si.

Encontro-me em estonteamento desde então, como se a embriaguez fosse contínua e progressiva. Seus olhos tragaram-me e revolveram-me em sucessivas ondas de desejo e mistério, inquietação e curiosidade. Olhos de ressaca. Fez-se presente o entendimento desta imagem literária; conheci minha Capitu.

Não tenho forças para lutar contra o verde oceâneo e vertiginoso que salta à sua fronte. Não tenho poderes para me desvencilhar da potência que carrega em si o seu olhar. Mirá-la esvai-me de autonomia lógica e racional, fazendo-me despender grande tempo e esforço para voltar a mim sem detrimento de meu juízo – um gládio quase sempre malogrado.

Obriga-me Capitu a que eu encare minhas fraquezas, travando um embate pacífico entre descobertas e prazeres. Diferentemente da literária, traçada como cigana oblíqua e dissimulada, a minha não é cônscia de seu poder. Sua juventude e garotice a impedem de artimanhas. Sua vontade e representação são legítimas de vivacidade de espírito moço e abocanham o coração velho e machucado que aqui se confessa.

Perco-me. Não só volteiam-me, mas provocam inconstância os olhos cingidos de clareza. Procuro-me. E me entrego aos beijos infindos de uma boca que não é só minha, de um gosto que não é só meu, mas que por meus os tomo enquanto posso. Encontro-me. Como alma despojada de sanidade, como quem busca alguma verdade.

Sonho em presença com o toque iminente, com o contato da pele ainda imaculada e viçosa, com o tatear dos contornos de sutil definição. Almejo os segundos ulteriores que me levarão à suspensão do respirar, à breve interrupção do Todo e sua transformação onírica: nossa efêmera univocidade.

Entorpeço-me no vascolejar de suas marés. Tento, em vão, sobreviver às contínuas pancadas das vagas de seus olhos e, invariavelmente, desfaleço indolente na margem arenosa de suas palavras. Derivo à mercê das intempéries de su'alma à espera de um resgate – de fato incapaz de me recobrar os sentidos.

... e assim ela se vai, levando consigo meu tormentoso talante, minha diminuta hombridade, minha falida sobriedade. Não há comedimento para a falta que deixará.

Certa vez conheci Capitu...